A verdade após Trump

Donald Trump é mais perigoso que um mero mentiroso, pois encontrou um modo de explorar o sósia econômico da ciência.

02/02/2021
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Donald Trump
Foto: Drew Angerer/Getty Images
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ATENAS – Os opositores do ex-presidente dos EUA Donald Trump o chamam de mentiroso. Mas Trump é bem pior que isso. Muitos políticos mentem para encobrir verdades inconvenientes. Mas Trump pode interromper longas sequências de mentiras comoventes com verdades que nenhum outro presidente admitiria, desde desconsiderar a visão dominante da globalização como inequivocamente benéfica até reconhecer que, sim, ele tentou retirar o financiamento do Serviço Postal dos EUA para dificultar o processo de votação dos Democratas.

 

Cientistas têm uma boa razão para celebrar a saída de Trump, tendo em vista o evidente alívio de poder apresentar dados epidemiológicos no palanque da Casa Branca sem medo de retaliação. Mas para determinar se podemos esperar um renascimento da verdade com o presidente Joe Biden, precisamos, primeiro, relembrar como nossas sociedades diferenciam a verdade.

 

Liberais amam a analogia mercadológica. Como aparelhos, opiniões flutuam no grande mercado de ideias, onde um processo descentralizado, envolvendo consumidores e produtores de visões e notícias, as avaliam. Opiniões verdadeiras ganham das falsas.

 

Infelizmente, o mercado de ideias em si é uma mentira. Diferentemente de aparelhos ou morangos, a utilidade das ideias não pode ser julgada em um nível individual. A verdade do Darwinismo, a teoria da relatividade de Einstein, ou a visão de Keynes de que a política monetária para de funcionar quando a taxa de juros chega a zero, não são determináveis pelo Seu José e pela Dona Maria com base em suas experiências pessoais. É por isso que nos apoiamos em instituições inerentemente antidemocráticas para testar essas teorias em nossos nomes.

 

Universidades e associações científicas assumem a tarefa de filtrar a mentira. Em contraste com a analogia de mercado, elas operam como uma liga planejada de forma centralizada organizando o hierárquico processo de revisão dos pares com o posicionamento de falsificar propostas friamente.

 

Todo cientista tem um motivo para ver sua teoria sobreviver a esse processo, mas ao menos nas ciências naturais, protocolos analisados rigidamente garantem que teorias sem apoio empírico dissolvam à luz das evidências. O processo científico impessoal libertou nossos ancestrais da ignorância e, junto com a “commodificação”, derrubou a mãe de todos os sistemas descendentes: o feudalismo.

 

Donald Trump é mais perigoso que um mero mentiroso, pois encontrou um modo de explorar o sósia econômico da ciência. Por trás de toda política governamental que nos afeta está oculta alguma hipótese econômica cuja autoridade é amparada por um processo de revisão dos pares que, a simples vista, pode ser confundido com o processo científico. A economia até confere seu próprio Prêmio Nobel. Mas não é nada como o verdadeiro McCoy, que o torna um grande aliado (involuntário) de Trump

 

Considerem os três pilares de qualquer teoria da conspiração popular. Ela fornece aos seus seguidores o sentimento de que possuem um conhecimento superior. Os empodera a expor as razões egoístas pelas quais especialistas propagam inverdades. E, por fim, os alista em uma causa que é maior que eles mesmos contra um inimigo que vai fazer de tudo para evitar que a verdade prevaleça.

 

Para que não esqueçamos, esses são os mesmos pilares que apoiaram a revolução científica. O que difere da ciência é o processo de falsificação. Teorias conspiratórias não temem evidências empíricas, porque podem se explicar sem elas ou incorporá-las na teoria. Em contraste, evidencias empíricas ajudam a ciência a descartar a inverdade, devido à indiferença da natureza em relação às nossas teorias sobre ela. O clima vai fazer o que quiser, independentemente de previsões meteorológicas, então quando as previsões dos meteorologistas erram, seu modelo deve estar errado.

 

Você já se perguntou como dois economistas laureados com o Nobel, às vezes partilhando o mesmo prêmio anual, podem se considerar charlatões? Isso nunca aconteceria entre físicos e biólogos laureados. A razão pela qual isso acontece entre economistas é que mercados e sociedades não são nada iguais ao clima. Diferentemente da meteorologia, se um analista financeiro respeitável prevê uma queda brusca no mercado de ações, essa queda vai acontecer, mesmo se esse analista estava bêbado quando fez a previsão.

 

É por isso que nem o sucesso e o fracasso empíricos descartam uma teoria econômica. Como os teóricos da conspiração e os teólogos, economistas de diferentes escolas – keynesianos, monetaristas, marxistas, por exemplo – podem explicar cada observação possível dentro dos confins dos seus paradigmas particulares. E, como as religiões, o credo prevalecente é resultado de lutas de poder entre grupos escondendo seus interesses por trás de diferentes dogmas.

 

Por décadas antes de sua eleição, incontáveis pessoas impotentes estavam ouvindo especialistas em economia dizer que as políticas que estavam acabando com suas vidas sobreviveram ao processo de falsificação científica. Era uma mentira monstruosa que permitiu que Trump armasse o seu desespero contra o “establishment” – e, também, contra o ethos científico contaminado pela sua associação com a economia.

 

Trump está fora, felizmente. Mas a visão sobre a economia que deu a Trump seu ponto de apoio político permanece enraizada, com sua influência até maior com o presidente Joe Biden. A nova administração possui os mesmos especialistas que promoveram falsas profecias que reforçavam a irracional, desigual, abusiva ordem econômica e social que gerou o trumpismo.

 

Considere a invenção deles de uma noção mística de “desemprego” natural para explicar o fracasso da sua teoria de que abaixar o salário-mínimo impulsionaria o emprego. Ou lembrem de como, quando a desregulação que promoveram causou a crise financeira, eles culparam o excesso de presença estatal no negócio das hipotecas, enquanto pressionavam governos a resgatarem os financiadores da desregulação.

 

A normalidade voltou a Casa Branca. Biden vai tentar não mentir, sendo econômico com a verdade quando precisar. Mas ele também nunca vai revelar verdades cruciais como as que Trump deixava escapar. A verdade, com isso, permanecerá sob ataque do trumpismo (um movimento assistido pelas políticas tóxicas que as falsas verdades econômicas desses especialistas apoiam) e de especialistas servindo na nova administração.

 

*Publicado originalmente em 'Project Sundicate'

 

Tradução de Isabela Palhares

 

02/02/2021

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/A-verdade-apos-Trump/6/49839

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/210796
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