A privatização do futuro

02/08/2017
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Cerca de 70% do Planeta Terra é coberto por água. Contudo, apenas 2,5% são de água potável. Portanto, um recurso absolutamente escasso e com uma importância gigantesca para qualquer país do mundo quando se fala no planejamento do futuro.

 

Desta pequena reserva, 80% estão concentradas nas calotas polares e em geleiras, e 12% nos cursos hídricos e aquíferos estão no território brasileiro. Isto quer dizer que, com a ressalva das águas congeladas, o Brasil detém 60% das águas correntes de todo o mundo. Esse potencial demonstra que a água é uma reserva estratégica para um país que possui uma imensa dívida social com a sua população.

 

O acesso à água é um retrato da desigualdade planetária, pois mais de 1,1 bilhão de pessoas não recebem água tratada, resultando em índices absurdos de morte por doenças derivadas da falta deste recurso, cerca de 1,6 milhão de pessoas por ano. Se trouxermos o problema para o Brasil, 35 milhões de brasileiros e brasileiras não têm acesso à água e apenas 83% da população recebe esta diretamente em seus lares. O índice de esgoto tratado é ainda pior, beneficiando pouco mais de 40% da população. A situação fica ainda pior se considerarmos que 35% da água que recebe tratamento é desperdiçada em ligações clandestinas, vazamentos, mediação incorreta ou mero desperdício.

 

Somam-se a este problema a falta de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos na grande maioria dos estados, sendo hoje possível contar nos dedos quantas bacias realmente possuem política de controle sobre o uso da água. Se considerarmos a exigência de cobrança aos grandes usuários, em homenagem ao princípio do usuário/poluidor-pagador, o índice é ainda menor. Na verdade, insignificante, demonstrando o elevado grau de apropriação privada de um recurso que é público, e de externalização de danos para a sociedade, vejam o exemplo do crime ambiental de Mariana ou da falta de abastecimento nas grandes capitais em período de seca.

 

Se não bastasse todas essas dificuldades, existe uma imensa pressão de determinados segmentos e grupos políticos para a privatização não apenas do saneamento, mas das águas como um todo. O abastecimento de água é um grande negócio, muito lucrativo, tanto que financia a implementação dos serviços de coleta e tratamento de esgoto e, em algumas cidades, de drenagem, com sólida folga. Aliás, a lucratividade do abastecimento de água, com todas as precariedades do serviço, é um dos motivos para o baixo investimento em outras áreas, pois tratar esgoto é algo muito caro.

 

Ocorre que o serviço privatizado não deu certo em lugar algum do planeta, muito menos no Brasil. Países que chegaram a ver a privatizar o abastecimento foram obrigados a voltar atrás, como França, Alemanha, Argentina, Bolívia e os próprios Estados Unidos. Em regra, a privatização apenas encareceu o serviço em todo o planeta e elitizou o acesso, sem contar a queda de qualidade na prestação e no produto, como destaca o relator da ONU sobre o tema, Leo Heller, que ainda vê o processo em andamento no Brasil como “preocupante” e “problemático”.

 

No entanto, o problema é ainda mais grave do que uma simples discussão sobre prestação de serviços. Como já colocado anteriormente, a soberania nacional está em cheque, pois um bem público que é raro, extremamente valioso e escasso, além de utilizado por toda a sociedade, passa para o controle privado. Num momento que a geolítica internacional discute a escassez, pois até mesmo Roma, berço dos aquedutos romanos sofre com a falta d’água, prefeitos e governadores brasileiros, com o apoio descarado do governo central, entregam um patrimônio fundamental para planejar o futuro das cidades ao setor privado. Desconsideram que o acesso à água é mais do que um simples serviço, e sim um direito fundamental protegido pela Constituição e acordos internacionais.

 

- Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.

 

https://sustentabilidadeedemocracia.wordpress.com/2017/08/02/a-privatizacao-do-futuro/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/187265
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