Dilemas da Política Brasileira de CTI:

Articular o social e o produtivo

09/10/2015
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 507: Conocimiento, ciencia y tecnología 29/09/2015

Na última década, apesar da significativa expansão do mercado interno e do crescimento da economia, a indústria brasileira tem perdido dinamismo. Isto tem sido associado por alguns à apreciação cambial resultante da política macroeconômica e ao aumento dos preços das "commodities" resultante do chamado “efeito China”.

 

Estes elementos, no entanto, apenas parcialmente explicam um fenômeno que já se mostrava  evidente nos anos 1980 e 1990, Após haver internalizado os benefícios da Segunda Revolução Industrial, a indústria brasileira deveria se defrontar com uma reestruturação que incorporasse  os benefícios da revolução sócio técnica em curso.  Ao mesmo tempo, a financeirização da economia global (e da brasileira também) e a associada reorganização das atividades produtivas por parte das grandes empresas transnacionais cada vez mais subordinadas à lógica das finanças adicionam desafios à estrutura produtiva brasileira. A explosão do desenvolvimento chinês ao longo dos anos 2000 e a geração de saldos respeitáveis na balança comercial brasileira apenas adiou o enfrentamento destes problemas.

 

A crise mundial atual iniciada em 2007-2008 e seus desdobramentos agravam esta situação e adicionam novas especificidades. O conjunto de políticas adotado pelo Brasil no enfrentamento dos estágios iniciais da crise, com destaque para a atuação incisiva dos bancos oficiais brasileiros para garantir a sobrevivência financeira das principais empresas brasileiras e as mudanças na geopolítica introduzidas pela formação de alianças como a dos BRICS trazem, no médio prazo novos elementos que não podem ser ignorados ao se discutir os desafios atuais da indústria.

 

A partir de 2003, no Brasil, o sucesso das políticas de inclusão social, a melhoria na distribuição da renda e a dinamização do mercado de trabalho transformaram positivamente o país o que torna, também, o debate sobre a estrutura produtiva muito mais complexo. Por um lado, os indicadores tradicionais mostram uma situação preocupante. A participação do valor adicionado da indústria de transformação no PIB que cresceu de 19,8% em 1947 a 35,9% em 1985, vem  perdendo terreno, caindo para 18% em 2003 e 13,1% em 2013.

 

Dentro do tecido industrial, ocorre também uma diminuição da importância relativa das atividades de alta tecnologia. O VTI do conjunto das tecnologias de informação e comunicação representava  aproximadamente 1,4% do PIB em 2000, caindo para 0,97% em 2005 e 0,4% em 2011. Entre 2008 e 2010, nos Estados Unidos, segundo o Bureau of Economic Analysis, o peso das TICs no PIB era de 9% e na União Européia oscilava entre 5% e 7%.

 

Observa-se também, esvaziamento progressivo dos sistemas produtivos e inovativos brasileiros em geral e nas atividades de alta intensidade tecnológica, em particular (aproximadamente 70% da demanda final brasileira era suprida por importações em 2008) e deterioração crescente na balança comercial de manufaturados (as atividades de alta e média-alta tecnologia foram responsáveis, em 2013, por um déficit superior a US$ 90 bilhões). Desindustrialização e perda do tecido industrial são acompanhados por uma significativa desnacionalização da estrutura produtiva. O estoque de capital estrangeiro na indústria brasileira aumentou de US$ 32 bilhões em 2000 para US$ 221,8 bilhões em 2011, representando 30% do PIB. Nas atividades de alta e média alta tecnologias, o aumento foi de mais de 300%.

 

Presença de ETNs

 

O aumento da participação das empresas subsidiárias de ETNs na estrutura produtiva pode ser considerado um resultado direto da política econômica, industrial e de inovação adotada no país, a qual tem como sua principal hipótese a ideia de que as subsidiárias de ETNs podem cumprir um papel virtuoso. A política de inovação brasileira desde seu início orienta-se pela noção de catch-up e é fortemente influenciada pelos modelos e instrumentos adotados pelos países considerados mais desenvolvidos. Mais ainda, desde 2003, possui como objetivo central diminuir os custos da inovação e está baseada em eixos tais como: criação de novas institucionalidades voltadas à oferta de mecanismos para estimular a interação entre universidade e empresas (incubadoras, cidades inovadoras, núcleos de inovação tecnológica, redes de inovação, plataformas tecnológicas, entre outras) e implementação de mecanismos fiscais e creditícios voltados às atividades inovativas.

 

Os resultados da política, se medidos por meio dos indicadores tradicionais – como taxa de inovação ou dispêndios em pesquisa e desenvolvimento (P&D) –, têm sido decepcionantes, o que confirma o quadro apresentado. O país continua com baixa importância relativa das atividades intensivas em tecnologia, tendo perdido, de fato, capacidade tecnológica em diferentes sistemas produtivos e inovativos.

 

As subsidiárias de ETNs vêm se beneficiando significativamente dos incentivos fiscais e dos financiamentos à inovação. Porém, os resultados desse apoio têm sido decepcionantes. Apesar de serem beneficiárias de diversos instrumentos da política, as subsidiárias de ETNs têm, em sua maioria, diminuído seus esforços de P&D e de inovação no país (Cassiolato e Szapiro 2015). 

 

A atuação das subsidiárias das ETNs é subordinada às estratégias globais de suas matrizes e sua contribuição aos diferentes sistemas nacionais de inovação não deve ser superestimada nem percebida como uma maneira automática de construir uma capacitação interna de inovação. Estudos detalhados sobre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul [Cassiolato et al. (2013); (Sun (2010)] apontam que as atividades de P&D realizadas por subsidiárias de ETNs são marginais.

 

Suas estratégias e dinâmica organizacional e seu padrão de investimento (inclusive P&D) têm sido modeladas por novas articulações entre finanças e indústria [Chesnais e Sauviat (2005)]. Parte principal de sua estratégia está baseada na centralização de ativos financeiros, realizada através de uma empresa holding, no mais das vezes localizada em paraísos fiscais e fora, portanto, do alcance da legislação e do controle das instituições nacionais de seus países originários As ETNs passam a se caracterizar por um relativo declínio da importância atribuída às atividades de produção, com um aumento associado na importância das atividades financeiras e apropriação de valor dos ativos intangíveis [Serfati (2008)].

 

Desse modo, em diversos casos, dentre os quais o Brasil se destaca, a chamada internacionalização das atividades de P&D refere-se, primeiramente, à aquisição de capacitações locais, especialmente por meio da compra de empresas nacionais, cujos laboratórios de P&D são “herdados” pelas empresas que as adquirem, não faltando exemplos nos quais as operações desses laboratórios são depreciadas ou até encerradas.

 

Assim, o objetivo de política perseguido pelos governos de países em desenvolvimento, inclusive e particularmente pelo Brasil, de atrair IDE na expectativa de que ele seja um dos principais pilares de uma necessária renovação industrial é ao mesmo tempo bastante ilusório, na medida em que subestima a natureza e a força dos fatores estruturais que têm ocorrido desde meados dos anos 1970, e em grande parte equivocado, pois deixa de reconhecer que a mudança de paradigma tecnológico modificou os parâmetros de transferências internacionais de tecnologia fazendo com que o crescimento industrial local e endógeno se tornasse dependente em um grau muito maior do que no período anterior (1960-1975) de fatores que devem ser criados e construídos localmente (Cassiolato et al 2014).

 

Em vez de centrar sua estratégia produtiva na atração de subsidiárias de ETNs o Brasil poderia ter aproveitado o espaço aberto pelo sucesso das políticas sociais a partir do governo Lula. De fato, no caso brasileiro, continua existindo, infelizmente, uma clara separação entre as políticas industrial e de inovação e as de desenvolvimento social e territorial.

 

Defender as conquistas

 

O território brasileiro e sua estrutura produtiva têm sido revolucionados pelo desenvolvimento de inúmeros arranjos produtivos locais (APLs). Impulsionados pelo aumento da renda local, resultado dos programas sociais, e dinamizados pela importante interiorização da educação, capacitação e formação técnica, conseqüência da política de ensino médio e superior, APLs especializados em atividades da agroindústria, bens de consumo não duráveis, economia da cultura, entre outros tem proliferado, aumentando a renda no território e permitindo processos virtuosos de transformação. A sua escala reduzida e propagação por diferentes partes do território, acompanhada, em muitas vezes por significativa informalidade os torna, entretanto, fora de alcance  das lentes tradicionais de captação de fenômenos produtivos e dos correspondentes indicadores.

 

Assim a deterioração da estrutura produtiva brasileira tradicional é acompanhada for fenômenos de transformação produtiva praticamente invisíveis. Tais mudanças ocorrem paradoxalmente num período em que a política industrial é reintroduzida na agenda brasileira, com o mercado interno aumentando de forma significativa.

 

Além da tendência a imitar, sem a necessária adequação, os modelos, agendas e instrumentos de política geradas em outros contextos, os objetivos e instrumentos da política produtiva e de inovação tem se dissociados daqueles das políticas de desenvolvimento social. A política social foi capaz de incluir na economia e na sociedade milhões de brasileiros que se tornaram cidadãos e consumidores com demandas muito claras e intensiva em inovações. Demandas de melhores condições de vida e alimentação, saúde, educação, habitação, transporte, saneamento, cultura, entre outras, exigem capacitações produtivas e inovativas, assim como soluções e novas tecnologias específicas, que não podem ser importadas, aos diferentes territórios.

 

Os ajustes macroeconômicos ora em implantação impactam negativamente a política produtiva e os sistemas produtivos locais acima apontados. Para que não se percam os ganhos obtidos na última década e que se recupere a estrutura produtiva é necessário uma agenda de política industrial e tecnológica capaz de fazer convergir os objetivos do desenvolvimento brasileiro em suas múltiplas dimensões, colocando a sócio-ambiental no centro das prioridades. Com isto uma série de possibilidades para reforço de trajetórias benignas e autoreforçadoras de desenvolvimento podem ser vislumbradas.

 

Uma primeira grande oportunidade consiste em estimular o desenvolvimento de arranjos produtivos e inovativos locais relacionados à ampliação da qualidade e da provisão dos serviços públicos essenciais, como aqueles elencados pelo Plano Brasil Sem Miséria. Nesta perspectiva a política de desenvolvimento industrial e tecnológico deveria ser maiormente orientada para a mobilização e o adensamento de capacitações, atividades e sistemas produtivos e inovativos centrados na provisão de alimentos, saúde, educação, habitação (com saneamento e acesso a água e energia), tratamento de resíduos sólidos, cultura, dentre outros serviços públicos.

 

Um segundo vetor de oportunidades dessa integração e fortalecimento da política de desenvolvimento, deriva  da capacidade  da política industrial mobilizar as vantagens oferecidas pelo vasto território brasileiro. Apesar das conquistas obtidas com a descentralização dos recursos, a política industrial e de inovação ainda incorporam uma visão ultrapassada do ponto de vista espacial. Por exemplo, ambas ainda colocam a questão regional apenas como um apêndice compensatório e o enfoque setorial ainda é pensado de forma desterritorializada. Uma política com enfoque territorial poderia consolidar os importantes avanços que levaram à implementação de novas estruturas de ensino e pesquisa tecnológica voltadas a problemas locais, tais como: os institutos federais, as novas universidades públicas regionais e os centros vocacionais tecnológicos. Esta institucionalidade já é aproveitada parcialmente na capacitação tecnológica voltada à formação e difusão de conhecimentos de C&T, visando a melhoria dos arranjos produtivos locais, mas ainda de forma reduzida.

 

Finalmente o Brasil deveria de fato aproveitar as oportunidades trazidas pelo esgotamento do paradigma produtivo baseado na produção e consumo de massas e intensivo na exploração de recursos naturais esgotáveis. O novo paradigma da sustentabilidade encontra no Brasil, talvez, o seu maior potencial de realização dadas as nossas especificidades. Isto deve ser pensado a partir da eleição de prioridades da política que se relacionem aos grandes desafios da sociedade brasileira. Neste sentido, a seleção de áreas consideradas como "estratégicas” ou “portadoras de futuro” deveriam contemplar, em primeiro lugar, aquelas de maior impacto na nossa economia e sociedade: alimentação, saúde, educação, habitação, saneamento, mobilidade urbana, entre outras. Além de inaugurar novos e adequados espaços para o desenvolvimento brasileiro, tais propostas apresentam potencial para resolver algumas de suas mais graves distorções e mais prementes ameaças: a desindustrialização e a escalada das importações de manufaturados, tecnologias e demais bens e serviços.

 

José E Cassiolato, economista, é professor associado da universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

 

Bibliografia

 

CASSIOLATO, J. E; ZUCOLOTO, G.; ABROL, D.; LIU, X.  FDI and National Systems of Innovation: Lessons from the Experience of BRICS. In: CASSIOLATO, J. E., ZUCOLOTO, G., ABROL, D., XIELIN, L. (eds) Transnational Corporations and Local Innovation. London New York New Delhi: Routledge Taylor & Francis Group, 2013, p. 1-67.

 

CASSIOLATO, J. E.; SZAPIRO, M. H. S. Os dilemas da política industrial e de inovação: os problemas da Região Sudeste são os do Brasil. In: LEAL, C.; LINHARES, L.; LEMOS, C.; SILVA, M.; Lastres, H. (Org.). Um olhar territorial para o desenvolvimento: Sudeste. 1ed. Rio de Janeiro: BNDES, 2015, p. 284-317.

 

CASSIOLATO, J. E.; ZUCOLOTO, G.; TAVARES, J. M. H. “Empresas transnacionais e desenvolvimento tecnológico brasileiro: uma análise a partir das contribuições de François Chesnais”. In: CASSIOLATO, J. E.; MATOS, M. P. M.; LASTRES, H. M. M. (Eds.) Desenvolvimento e mundialização: O Brasil e o pensamento de François Chesnais. Rio de Janeiro: E-papers, 2014.

 

CHESNAIS, F.; SAUVIAT, C. “The financing of innovation-related investment in the contemporary global finance-dominated accumulation regime”. In: CASSIOLATO, J. E.; LASTRES, H. M. M.; MACIEL, M. L. (Eds.) Systems of Innovation and Development: evidence from Brazil. Cheltenham: Edward Elgar, 2003, p. 61-118.

 

SERFATI, C. Financial dimensions of transnational corporations, global value chain and technological innovation. Journal of Innovation Economics, v. 2, 2008.

 

SUN, Y., 2010. ‘Foreign Research and Development in China: A Sectoral Approach’, International Journal of Technology Management, 51(2/3/4): 342–63, 2010.

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/172928

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