A lição de Brizola; e o que mais?

08/12/2015
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 brizola
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Em 1961, Brizola trouxe transmissores de rádio ao Piratini e denunciou o golpe sem parar. Mas para se resistir a um cerco antipopular, é preciso muito mais.

 

Depois da largada, a cargo de um personagem síntese dos interesses e da vigarice perfilados na conspiração, entra em campo o pelotão do abrandamento para aspergir lavanda no material que povoa o esgoto da democracia.

 

A operação ‘abrandamento’ está curso no Brasil nos dias que correm, após a largada de Cunha.

 

Ela é disseminada por aqueles que formam o intestino delgado e sinuoso do golpismo, onde se reprocessa tudo no formato de democracia e lei.

 

Folha e Serra, estão aí a ministrar à juventude brasileira um recall de como as coisas se deram em 1964.

 

Elas parecem servir como uma luva no Brasil de 2015.

 

Leiam o contorcionismo escrachado na primeira página do veículo dos Frias de conhecidas tradições no ramo.

 

Em garrafais, na edição da segunda-feira : ‘Dilma nunca confiou em mim, diz Temer’. E Serra, obsequioso, logo abaixo: ‘Farei tudo para ajudar a um eventual governo Temer’.

 

Quer dizer, o desembarque da Normandia está dado; e contará com desprendimento de personagens que Serra encarna tão bem.

 

No jornal dos Frias, sob o clima sulforoso de ruptura iminente, o dado objetivo da inviabilidade do golpe é tratado em duas linhas de se ler com lupa: ‘15 de 27 governadores reprovam o impeachment e nove não se manifestam’, diz o contraponto liliputiano.

 

É só o primeiro arranque da cavalaria da isenção.

 

Virão outros. E outros, outros e outros.

 

Até o discernimento social ser entorpecido a ponto de se reduzir a nação a um corpo inerte jogado em uma maca, à mercê dos cirurgiões especialistas em liquidar capítulos da história a machadadas.

 

Não faltarão editoriais evocativos a saudá-los como patronos de uma nova aurora democrática. O do Globo pode replicar o vibrante texto de 2 de abril de 1964, por exemplo: ‘Ressurge a democracia!'. O do Estadão não trairá a atualidade de seus sentimentos se repetir as garrafais estampadas no mesmo 2 de abril, quando o golpe ainda fresco iniciava a repressão e a busca de lideranças e dirigentes partidários em todo o país: ‘Vitorioso o movimento democrático’. Idem, no caso da Folha, que a exemplo de hoje, ‘normalizou’ a violência constitucional, tranquilizando a nação: ‘Congresso declara a Presidência vaga; Mazzilli assume’. Simples assim, viu Temer?

 

Vale tudo, menos a análise honesta dos interesses em jogo.

 

Com base nesse método, 1964 nada mais foi que um mal passo do país;um ciclo de irresponsabilidade  sob a presidência de um político hesitante e mulherengo.

 

Esse, o epitáfio conservador  à geração que lutou por  reformas estruturais para cicatrizar as feridas do apartheid  secular brasileiro.

 

A mesma dissipação personifica agora o  ‘problema do país na ‘Dilma autoritária’, mas também ‘má gestora’ e ‘cúmplice do lulopetismo’.

 

Às favas a crise mundial que implantou a desordem dentro da desordem, aplicando urbi et orbi o receituário que agora se apregoa aqui como a ‘ponte para o futuro’: corta-fecha-desregula-arrocha.

 

Com a mesma negligência é tratado o cerco diuturno a um governo de  54 milhões de votos, atacado como ilegítimo do minuto final da apuração até hoje.

 

Depois de obriga-lo à rendição desastrosa ao programa derrotado, passou-se  a acusa-lo de estelionato, impedindo-o de governar.

 

Essa a montanha-russa que rege o país nesses cerca de 337 dias de fúria e noites de assombração, desde a posse de Dilma.

 

Importa aqui, sobretudo, constatar a habilidosa supressão midiática das verdadeiras pontes para o debate daquilo que interliga o passado ao presente e condiciona o futuro: a disputa em torno da agenda do desenvolvimento brasileiro.

 

Qual país? Para quem? Como chegar lá? Onde e por que os recursos estrangulam?

 

A mutação dos conflitos do desenvolvimento em ‘escândalos e corrupção’ é uma velha receita que dá certo.

 

O governo Jango durou apenas 31 meses  –de setembro de 1961 a 1º de abril de 1964.

 

Durante todo o período esteve acossado pelo bafo renitente desse mesmo ardil dos que tentavam apeá-lo, sobrando ao Presidente espaço reduzido de tempo e circunstância para planejar e governar  o país.

 

Lembra algo?

 

Ainda assim, em 1964, pesquisas sigilosas do Ibope indicavam que o herdeiro do getulismo teria condições de vencer nova eleição.

 

Por isso foi dado o golpe preventivo. Ou não haveria necessidade de fazê-lo.

 

De novo, lembra algo?

 

Portanto, hoje como ontem, o que estamos vivendo não é uma reação de autodefesa da nação, como querem os vulgarizadores da fatalidade, mas o epílogo de uma progressão de minigolpes frustrados.

 

Em 1961 tentou-se, por exemplo, impedir a posse de Jango, após a renúncia de Jânio Quadros.

 

Só a resistência organizada  –é oportuno  escandir a palavra  or-ga-ni-za-da--   impediu a consumação.

 

É disso –de resistência organizada—que se trata agora e outra vez  crucialmente.

 

A experiência bem sucedida dos anos 60 merece retrospecto, como já se fez neste espaço uma vez.

 

Mas agora de forma ainda mais oportuna.

 

Lideranças como Ciro Gomes e o governador Flávio Dino, com razão, evocam a mobilização que vá além da retórica: não há resistência sem organização.

 

Em 27 de agosto de 1961, o então governador Leonel Brizola personificou esse requisito.

 

Nascia no Rio Grande do Sul a ‘Cadeia da Legalidade’.

 

Não era apenas um rótulo.

 

Formada por uma rede de rádios gaúchas, a resistência operava do porão do Palácio Piratini, para onde o líder gaúcho  requisitara os transmissores da rádio Guaíba, de Porto Alegre.

 

Brizola, porém, não se restringiu a disputar as ‘ondas do éter’ com o golpismo.

 

Tropas da Brigada Militar foram convocadas pelo governador.

 

Os soldados passaram a proteger a legalidade e a trincheira radiofônica em vigília diuturna.

 

Através das ondas médias e curtas, o governador fazia o mesmo 24 horas por dia. Brizola conclamava o povo a ir às ruas contra o golpe da junta militar que, em Brasília, recusava autorização para Jango, em viagem oficial ao exterior, retornar ao país.

 

Aos poucos, outras emissoras de Porto Alegre e do interior do Estado uniram-se à Rede, que chegou a cravar 100% de audiência no estado.

 

O efeito contagiante romperia a fronteira gaúcha para  formar uma cadeia com  104 emissoras de todo o Brasil e de países vizinhos.

 

Boletins noticiosos em inglês, espanhol e alemão passaram a ser emitidos.

 

Foram 10 dias que abalaram o Brasil.

 

Finalmente, o III Exército rachou e declarou solidariedade ao movimento.

 

O conjunto forçou o Congresso a buscar uma solução negociada, que circunscreveria Jango nas amarras do parlamentarismo.

 

Descarnado de instrumentos de comando, o Presidente tomou posse, mas gastaria dois anos de seu mandato na agonia parlamentar.

 

O impasse corroeu adicionalmente as bases frágeis do investimento, acelerou a fuga de capitais e adicionou pressão à caldeira inflacionária.

 

Estava criado o lastro para legitimar o discurso udenista do desgoverno, de um Brasil aos cacos, prestes a explodir – ‘se não for hoje, de amanhã não passa’.

 

A sensação de familiaridade não é gratuita.

 

Ontem como hoje, a emissão conservadora foi decisiva para levar a classe média brasileira a um discernimento moralista em relação aos desafios do desenvolvimento.

 

E mesmo assim, apenas uma parte dela.

 

Pelas urnas é que não haveria de ser a consagração conservadora

 

Dias antes do golpe, pesquisas do Ibope mantidas então em sigilo, indicavam que 49,8% cogitavam reeleger o Presidente, caso ele se candidatasse em 1965.  E nada menos que  59% apoiavam as reformas de base anunciadas  no comício da Central do Brasil, considerado a ‘ruptura’  legitimadora do funeral democrático.

 

Uma proposta de Jango de consultar a sociedade sobre a ampliação da democracia e da ação pública para o desenvolvimento seria sumariamente descartada no Congresso.

 

Foi assim que a espiral golpista fechou todas as portas à tentativa de formação democrática das grandes maiorias indispensáveis ao desenvolvimento.

 

O ódio doentio ao governo, às suas propostas e aos seus beneficiários, distorcia, boicotava e interditava o debate, de modo a inviabilizar e criminalizar as bandeiras progressistas.

 

Formou-se uma tradição. Essa que está aí mais viva que nunca.

 

Décadas posteriores de censura e monopólio das comunicações estenderiam a qualquer agenda de mudança a mesma demonização dispensada às reformas de base em  64.

 

Esse é o ponto em que estamos.

 

No calor dos protestos de junho de 2013, a Presidenta Dilma também propôs uma consulta popular para destravar a reforma do sistema político, degenerado pela tutela do dinheiro grosso

 

A rejeição em bloco do conservadorismo evidenciou a determinação inoxidável de solapar qualquer canal de participação mais efetiva da sociedade na necessária reordenação do país.

 

Um pedaço do que se abortou e se reprimiu em 1964 foi resgatado vinte e quatro anos depois pela Constituição de 1988, graças ao impulso excepcional derivado da derrubada da ditadura.

 

Desde então, os conflitos que interligam o passado ao presente inscreveram o desenvolvimento brasileiro em um paradoxo clássico.

 

Uma Constituição democrática promete mais que o mercado está disposto a conceder e os donos do dinheiro a tolerar.

 

Uma fresta de avanços nas políticas sociais, no emprego, no crédito e , sobretudo, na recomposição de poder aquisitivo do salário mínimo, a partir da eleição de Lula, em 2002, revelaria o potencial comprimido nesse impasse: um dos maiores mercados de massa do mundo emergiu com a energia de um leão faminto.

 

Em menos de uma década consolidou-se uma faixa de consumo de massa que já reúne 53% da população e 46% da renda nacional.

 

A crise mundial de 2008 eclodiu no meio desse percurso.

 

Quando a blindagem financeira e ideológica do sistema fraquejou revelou-se com maior nitidez a emergência de um país que já não cabia mais em estruturas desenhadas para 1/3 de sua população.

 

As desproporções inscritas nesse conflito ocupam o centro do debate político e macroeconômico atual.

 

Nessa moldura de impasses, golpes e vigarices duelam dois projetos de futuro.

 

O do impeachment  quer submeter a sociedade a um freio de arrumação classista.

 

‘Os aeroportos estão insuportáveis’ .

 

Trata-se, no fundo, de dilapidar os salários destruindo as bases do pleno emprego. Rompido o lacre do mercado de trabalho, o resto vem por gravidade.

 

A dimensão política das escolhas do desenvolvimento precisa ser  explicitada para que o conflito possa ativar o discernimento social nessa encruzilhada.

 

Só a escandalosa ocultação das premissas permite reduzir os impasses a um problema de gestão da Dilma –ou de corrupção do ‘lulopetismo’, a exemplo da caricatura do governo Jango vendida pela mídia nos anos 60.

 

Para isso a organização –repita-se, organização—de uma Rede da Legalidade contra o golpe é urgente.

 

Essa, a atualidade da lição de Brizola. Porém, não basta emitir apelos à resistência.

 

A legalidade terá que colocar na mesa a sua proposta para o passo seguinte do país: é no mínimo duvidoso que se possa resistir a um cerco antipopular sem um projeto popular e democrático, crível, para o futuro da sociedade.

 

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/A-licao-de-Brizola-e-o-que-mais-/35123

https://www.alainet.org/es/node/174113
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