Reflexões sobre a Defesa do Brasil

21/10/2012
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Resumo
 
Este texto reúne reflexões sobre a Estratégia de Defesa Nacional. Aponta para a necessidade de revisão de posturas do Estado e para a definição de objetivos estratégicos que conciliem a Defesa com a construção de uma sociedade economicamente desenvolvida, politicamente democrática e socialmente menos desigual. Assinala a importância do desenvolvimento científico e tecnológico, bem como da integração das nações sul-americanas.
 
Introdução
 
Estratégia nacional de defesa pressupõe a existência de “interessenacional”. Pergunto: é possível, no quadro de hoje, um Estado fixar, unilateralmente, o espaço de sua soberania e a projeção de seus interesses? Consabidamente, os conceitos de nacional e de soberania sobre esse nacional não podem ser estabelecidos, em igualdade de condições, por Estados tão distintos quanto os EUA, o Brasil e o Paraguai.
 
Daí a pergunta: qual o conceito de soberania em mundo no qual um só pais – os EUA-- pode agir planetária e unilateralmente?
 
Qual é o espaço nacional do Afeganistão, do Iraque, do Paquistão, do Irã, e de Taiwan ?
 
Da Síria e da Líbia?
 
Do Líbano?
 
Parece mais plausível pensar que o conceito de interesse nacional, assim considerado como uma unidade, é menos ditado unilateralmente, porque, de essência, depende do reconhecimento das demais soberanias, a começar pelo reconhecimento de cada um de seus vizinhos. É, portanto, relacional. A geopolítica contemporânea, todavia, diz-nos que há países mais soberanos que outros, e países que não se conformam em suas fronteiras físicas, donde, eis a tentativa de uma classificação, país absolutamente soberano, países relativamente soberanos, países de soberania condominiada, ou, subordinados.
 
Talvez possamos agora dizer que construir uma estratégia nacional é optar por um objetivo-fim, ao qual se subordinam os objetivos-meio. Aquele decorre dos ‘objetivos nacionais’, condicionantes do papel que determinado Estado pretende desempenhar. Esses ‘objetivos nacionais’, à sua vez, seriam a decorrência dos interesses, dos valores e dos anseios da sociedade do Estado independente. Portanto, objetivos históricos.
 
Como identificar tais valores e esses interesses, à mercê, sempre, da manipulação ideológica?
 Estas questões conceituais não encerram as dúvidas todas, pois, sobrevive mais uma:
 
-- Quem dita, no plano da cada país, os conceitos de nacional e de interesse nacional?
 
Certamente, podemos dizer que o conceito de ‘interesse nacional’ da República Popular da China é ditado pelo seu Partido Comunista (idem relativamente, por exemplo a Cuba) – embora nem mesmo no caso da China e de Cuba (tampouco no Brasil de Geisel) se possa falar de um establishment impermeável a pressões sociais.   Nas chamadas democracias ocidentais, o interesse nacional é, em tese, definido pelo seu Congresso Nacional. Mas, nos EUA, essa definição remonta ao complexo industrial-militar a que se referiu o general Eisenhower, no célebre discurso de transmissão da presidência a J. Kennedy. Talvez a esse complexo Barack Obama, na próxima troca de posto na Casa Branca (se troca houver), se encontre na contingência de acrescentar o sistema financeiro, que ele se viu constrangido ou em todo caso incentivado a socorrer generosamente nos espocar da crise de 2008.
 
Quem, no Brasil, decide o que é e o que não é, o que é e o que deixou de ser ‘interesse nacional’?
 
O Estado? O que é o Estado em país periférico, ainda dependente, econômica, científica, tecnológica e militarmente?
 
O Congresso Nacional, que se omite na discussão desses temas, como de outros? Não é certamente a chamada sociedade civil, paralisada pelos seus fantasmas, como a fobia em face de temas como Segurança, Defesa e Inteligência. Nem muito menos os sindicatos, como sempre e em todos os períodos de crise, entrincheirados em seus pleitos econômicos. Será a Academia, que considera o tema uma questão menor e, assim, o relega aos recintos fechados das casernas? Também não são os políticos nem os Partidos, ainda marcados pelos 21 anos de ditadura militar.
 
Os donos do mundo
 
No período autoritário, o que então era apresentado como “interesse nacional” foi distorcidamente confundido com os ‘objetivos nacionais permanentes’ produzidos pela Escola Superior de Guerra, sob o binômio ‘segurança e desenvolvimento’. Nesse ambiente foi gestada a doutrina do golpe de 1964 e da ditadura em que se desdobrou, para o que muito contribuiu o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais-IPES, modelo do atual Instituto Milênio. Entre a ESG e a elite orgânica reunida no IPES circulava seu principal ideólogo, o general Golbery do Couto e Silva.
 
 Naqueles anos, com a militarização dos conceitos de ‘interesse nacional’ e de segurança, esta foi confinada aos limites do que se chamaria de ‘segurança interna’, e transformada em justificativa das estripulias levadas a cabo pelo Estado repressor. Cabia aos EUA cuidar de nossa segurança externa, nos termos estabelecidos pela inserção do Brasil na Guerra Fria.
 
Como é sabido, e na razão inversa de sua crescente presença no cenário internacional, o debate sobre o conceito e a visão estratégica de Defesa Nacional foi postergado a plano secundário, porque a produção de conhecimento, a análise e alguma reflexão ficaram adstritos às suas dimensões militares e bélicas e assim restritos às instituições militares de ensino, afastada a academia civil, obviamente desestimulada pela repressão. Mesmo essas dimensões militares e bélicas, condicionadas pelo papel destinado às forças brasileiras, eram tratadas como meras auxiliares da estratégia e das ações militares dos EUA.
 
Seja qual for a instituição mandatária, haverá, sempre, a questão crucial: como estabelecer os limites e a efetividade da soberania?
 
Se a História não estiver nos enganando, essa efetividade e esses limites, que vão da simples incolumidade territorial à sua expansão, dependem, à larga, do poder das canhoneiras. Certamente, é esse o ensinamento do falecido império britânico tanto quanto do vigente império norte-americano, para cuja Marinha seu mar territorial são “todos os mares azuis do mundo onde estiver o interesse do território nacional”. 
 
Estratégia significa longo prazo e implica objetivo-fim e meios de alcançá-la. A inserção do Estado nacional na ordem internacional requer disputa de espaço, que jamais se opera no plano da retórica. Raramente, um interesse nacional dialoga com outro interesse nacional e quase sempre se chocam com os projetos de hegemonia regional. O regime presente é de unipolaridade, em trânsito para a multi polaridade econômico-militar.
 
A contestada Pax Americana, herdeira do desfalecimento do duopólio americano-soviético, isto é,   o império da ‘superpotência solitária’, é hoje estranho e híbrido sistema ‘unimultipolar’, caminhando para um regime realmente multipolar, talvez aquele que supúnhamos havia sido erguido sobre os escombros do muro de Berlim e o suicídio da União Soviética. Até lá, qualquer que seja o futuro em gestação, viveremos – por mais quantos anos? 20? 30??, quem ousa a previsão? – como vivemos presentemente, sob a preeminência dos EUA em todos os níveis de expressão do Poder, seja econômico, seja científico e tecnológico, seja militar, seja cultural, e finalmente, político.
 
Esse provável multilateralismo, muito provável e ainda mais desejado, já está matizado pelo poder nuclear, que determina a amplitude dos respectivos interesses nacionais e os limites das soberanias, suas e dos demais. A ponta das baionetas e o fogo das belonaves foram substituídos pelas ogivas nucleares na cabeça dos mísseis, consagrando, de um modo geral, as potências em duas categorias fundamentais: as militarmente atômicas e as militarmente convencionais, estas, pelo menos do ponto de vista militar-estratégico, potencias de segunda classe.
 
Lembremos o sabido: o Iraque não foi invadido por possuir arsenal atômico, mas por não possuí-lo.
 
Tal multilateralismo supõe, porém, astros-reis e satélites, formando blocos. Não mais só unidades estatais.
 
Um horizonte de transformações
 
Se toda estratégia compreende o longo prazo, é mutante o espaço no qual se movem suas políticas, do que decorrem ajustes, para que ela se mantenha efetiva. Se há interesses permanentes –haverá?--, não há nem inimigos nem amigos permanentes. Se cada um de nós somos a nossa individualidade e as nossas circunstâncias, cada Estado é sua história própria condicionada pela história dos outros.
 
Assim, os EUA e a União Europeia que, do ponto de vista estratégico, podem ser considerados um só bloco político-militar. Ou, se quisermos, a superpotência é a OTAN.
 
É claro que a UE, hoje em grave crise econômica com seus inevitáveis desdobramentos políticos e sociais, já sob os riscos da desintegração, pode ser vista também como um bloco, mas, em tal hipótese, como bloco de autonomia relativa, esta em face dos EUA. O mais preciso talvez seja considerar essa UE como um bloco ancilar ou apêndice dos interesses estratégicos dos EUA, embora, na sua origem, a UE tenha sido concebida como defesa contra a hegemonia do gigante do Norte. É a configuração com a qual trabalhamos. Nas duas hipóteses, destaca-se a Alemanha de Merkel consolidando sua liderança sobre o resto do Continente, seu grande sonho, desta feita sem precisar dos tanques de Hitler, e com a colaboração da França.
 
Essa Alemanha é a principal beneficiária do colapso da URSS e do COMECON, pois, a pujança de hoje – maior potência industrial e econômico-financeira da Europa--, é muito obra da reunificação e de sua aproximação com os países da Europa Central e os integrantes da antiga União Soviética. É, no entanto, débil do ponto de vista militar. A segunda guerra acabou há quase 60 anos, mas os EUA de lá não se retiraram. Mantêm, até hoje, uma tropa de 60.000 homens estacionados em seu território. Conseguirá a Alemanha, no desdobramento da crise européia, alçar voo próprio, buscando abrigo no guarda-chuva nuclear russo? Neste sentido não há qualquer sinal visível a olho nu. Mas lembremo-nos que a proposta de Putin – um czar na República--, de volta à Presidência, é constituir o bloco da Eurásia. É cedo para saber se esta tentativa vingará.
 
Os EUA, com ou sem o apêndice europeu, são o grande pólo.
 
Outro é a representação da Ásia Oriental, com a estagnação japonesa e a ascensão planetária da China, seu astro dominante, anunciado substituto dos EUA numa perspectiva máxima de 30/50 anos. A China, com seu capitalismo de Estado eficiente, já ascendeu à invejável posição de segunda maior economia do planeta, maior credora norte-americana e dona da maior reserva de divisas do mundo. Busca, presentemente, constituir um mercado comum com o Japão e a Coreia do Sul. Alcançando êxito, transformar-se-á no centro dinâmico da economia mundial.
A Rússia nuclear, e sua hegemonia sobre a Eurásia, já referida, poderá ser o terceiro ou quarto pólo desse trevo de quatro folhas.
 
Tal multilateralismo, porém, compreenderá potências regionais ou sub-regionais, como a Índia nuclear, no sul da Ásia, a África do Sul e a Nigéria no continente africano, e, finalmente, o Brasil na América do Sul. O Brasil, democratizado, assume a liderança de um subcontinente que forceja por afastar-se das amarras da Guerra Fria. Registre-se o fim das ditaduras, o rompimento quase unânime com o cantochão do neoliberalismo e a emergência de governos populares e progressistas, comprometidos com desenvolvimento, inclusão social e integração regional.
 É chegada, pois, a hora de, com todo o cuidado possível, trazer essa discussão para o âmbito nacional brasileiro.
 
A política brasileira de defesa
 
Nossa extensão continental, nossa substantiva massa populacional, nossas riquezas naturais (minerais e hídricas), nosso desenvolvimento industrial e a potência de nossa agricultura, nossa unidade cultural, e, principalmente, porque consequencia de tudo isso, nossa ascendente inserção internacional,   econômica e política, porém, fazem fronteira geopolítica e estratégica com os EUA, embora possa ser, e pareça ser interessante para os EUA, que o Brasil seja uma potencia sub-regional de médio porte, e com esse papel conformada. Para muitos estrategistas norte-americanos o Brasil está destinado a desempenhar importante papel na geopolítica dos EUA para o hemisfério sul, qual seja o de amortecedor de ‘ímpetos revolucionários’.
 
No entanto pesam, senão conflitos, pelo menos dissensões entre os dois países em termos de política externa. À Casa Branca e ao Departamento de Estado foi desagradável o quase-sucesso de Brasil e Turquia nas negociações com o Irã. Não temos tido posições comuns sobre as guerras, invasões e intervenções que se processam no Oriente Médio, particularmente no que diz respeito ao Iraque, à Líbia e à Síria, tampouco sobre o conflito Israel-palestrinos-países árabes. Diferentemente do papel firme de nossa diplomacia na crise hondurenha, a posição do Departamento de Estado transitou da dubiedade para a conivência, em contraste com a condenação brasileira ao golpismo; o mesmo comportamento estadunidense repetir-se-ia na crise paraguaia, tanto no reconhecimento açodado do governo Franco, tanto apoiando a posterior gestão da OEA, quanto no questionamento das decisões do MERCOSUL, em todos esses exemplos na contramão de Brasil, Argentina e Uruguai.
 
De outra parte, ou de uma forma ou de outra, esta nossa inserção na política internacional se faz de forma tardia, retardatários que somos no ingresso no capitalismo, no desenvolvimento econômico, na condição de sujeito no cenário internacional e no desenvolvimento científico e tecnológico, donde retardatários, também, do ponto de vista industrial e militar. Assim, no início do segundo decênio do século XXI, e só agora, transitamos da dependência para a inserção soberana, condicionada esta pela correlação de forças continental e internacional, desfavorável.
Por conhecer a impossibilidade de pensar um conceito de ‘soberania absoluta’, para não dizer a impossibilidade tão-só do conceito de soberania, contra o qual grita nossa afirmação hemisférica, perguntemos:
 
-- Para quê e de Forças Armadas carecemos?
 
A busca das respostas faz-nos remontar à história da Guerra Fria e à política estadunidense para a área de nossa presença geopolítica, herdeira da Doutrina Monroe (1823). Política antiga.
 
Já pela Doutrina Truman (anos 50), os EUA, afrontados pela ascensão de Mao-Tsé-Tung na China (1949) e a guerra da Coreia (1950-1953), se comprometiam a enviar forças a qualquer pais do mundo ameaçado pela União Soviética, ou ‘pela subversão interna fomentada pelo comunismo’, ou o que quer que fosse que recebesse esse rótulo, como os inumeráveis movimentos de descolonização e libertação nacional.
 
No que diz respeito à America Latina, estrategicamente irrelevante naquela altura, eram pequenos os conflitos internos, não se cogitava de ameaça externa, e era tradicional nossa adesão incondicional à geopolítica estadunidense, aprofundada após a II Guerra Mundial. Nesse cenário a missão dos EUA era zelar pela segurança internacional, isto é, proteger-nos da ameaça do ‘imperialismo soviético’ cabendo às nossas forças armadas, cuidar do ‘inimigo interno’ as perturbações intestinas, tituladas todas como ‘ações comunistas’, comandadas, segundo a CIA, a partir de Moscou. Por tais razões, além desse seu papel de ‘policia interna’, as forças armadas do Continente foram adestradas como retaguarda dos EUA na eventualidade de um conflito internacional, de que resultou um tipo de formação de quadros ideologicamente reacionários e uma organização militar - - estratégias e equipamentos-- , a este mister adequada. Donde, trato agora das forças armadas brasileiras, sua dependência ideológica e a fragilidade técnico-operativa, representada pelo desaparelhamento bélico, também determinante da falência da indústria bélica nacional. Do ponto de vista objetivo, os EUA logravam expandir sua defesa nacional para nossos países – o que passa a justificar sua presença militar--, e passavam a contar com reforços doutrinários e políticos como a instalação de Escolas de Guerraem quase todos o Continente, e outros instrumentos como o Tratado do Rio, a OEA (1948) e a Escola Militar das Américas. Ao maniqueísmo dominante no cenário da Guerra Fria aderiu rapidamente a inteligência militar brasileira, de que são exemplos o Acordo Nuclear Brasil-Estados Unidos (1945) e o Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados Unidos (1952). Potência nuclear, os EUA a um só tempo despertavam segurança e medo; o mais prudente era abrigar-se sob suas asas. Como contrapartida pela submissão, escreve René Dreiffuss, receberíamos assistência política, militar e econômica. Esta a promessa.
 
A partir dos anos 60 (Kennedy, Johnson e Nixon), e muito preocupados com a emergência do primeiro regime comunista no Continente (Cuba, 1º de janeiro de 1959) voltam-se cada vez mais os EUA em levar as forças armadas latino-americanas para a repressão anticomunista, donde a emergência das inumeráveis ditaduras, por eles sustentadas, que passaram a manchar o mapa continental. Desenvolveu-se, então, a doutrina do combate à "guerra revolucionária". Nos anos 80 e 90 a estratégia era ‘desmilitarizar’ a America Latina, o que compreendia desestimular a incursão de nossos países nas áreas de tecnologia avançada como um todo, e, em particular nas industrias aeronáutica e aeroespacial, energia nuclear e cibernética.
Essa política, mais tarde, seria reforçada pela Doutrina de Defesa Nacional (do segundo Bush) definida após os atentados de 11 de setembro de 2001. 
 
Da continuidade dessa inter-relação e interligação de conteúdo ideológico, fala muito bem discurso do Secretário de Defesa dos EUA, Leon E. Panetta, na Escola Superior de Guerra do Brasil, em 25 de abril de 2012:
 
  É especialmente gratificante estar aqui na Escola Superior de Guerra. Orgulho-me do apoio que os Estados Unidos deram para ajudar na criação desta escola em 1949 e orgulho-me das ligações que foram construídas entre esta instituição e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Sei que a Universidade de Defesa Nacional em Washington está aguardando ansiosamente para receber o general Cherem no mês que vem e aprimorar ainda mais nossa crescente cooperação na formação militar profissional.
 
 
Nossas Forças Armadas – armadas?
 
Desgastadas política e socialmente com a ditadura instaurada em 1964, nossas Forças Armadas, desde o governo Collor, vêm sendo objeto de crescente marginalização, que se aprofundou no governo FHC. Solícito no atendimento às diretrizes norte-americanas, o segundo Fernando foi diligente na política de tentar confinar nossas Forças em atividades típicas de polícia, como o combate ao contrabando e ao narcotráfico. Mas, justiça lhe seja feita, deu o ponta-pé inicial para a criação do Ministério da Defesa, boa idéia que ainda poderá consolidar-se.
 
Já o governo Lula teve o mérito de aprovar a primeira Estratégia Nacional de Defesa com visão própria da inserção do Brasil no cenário geopolítico mundial, destacando-se sua ênfase no desenvolvimento doméstico das tecnologias aeroespacial, nuclear e cibernética e o acordo com a França para a fabricação no Brasil, com transferência de tecnologia, de submarinos convencionais (classe Scorpène e colaboração na construção do submarino brasileiro (casco) de propulsão nuclear, equipado com reator projetado e fabricado pela Marinha brasileira. Finalmente, a presidente Dilma (embora as Forças Armadas permaneçam cumprindo papel de policia nos morros cariocas) avança na definição de programa de investimentos em ciência e tecnologia, de especial em tecnologias duais, e na articulação com a indústria aqui instalada, indústria que, em crise, precisa ser encarada como parceira indispensável do programa de nacionalização de armamentos, sem a qual não teremos Forças Armadas dignas do nome.
 
Afinal, defesa nacional é defesa de quê e de quem? Da ‘comunidade nacional’, nada obstante suas fragmentações profundas? De nossos interesses? Ora os interesses patrocinados pelo Estado não são, necessariamente os interesses da ‘comunidade’ (ou das ‘comunidades nacionais’) mas de sua classe dominante.    O mesmo relativamente aos valores, pois não há como afirmar quais sejam eles, nem identificar aqueles que unificam o que se pode chamar de povo e nação. Sem dúvida, defesa nacional compreende defesa de nosso território, tanto quanto defesa de nossa soberania. Mas o que é soberania, e qual soberania é possível, num mundo dito globalizado, o qual, embora multipolar, uma multipolaridade de pólos assimétricos, conhece a hegemonia econômica, científica e militar do mais forte entre os mais fortes, e os mais fortes são potências nucleares, e, assim, e por tais méritos, senhores do mundo?
 
No Brasil, o que o Estado apresentava formalmente como o ‘interesse nacional’, era ditado, após a II Guerra Mundial, pela sua inserção dependente na Guerra Fria, resolvida, finalmente, pela renúncia da União Soviética.Aquela inserção, como já vimos, qualificava a política externa brasileira e determinava o caráter de nossas Forças Armadas. A saber, simplesmente não precisávamos delas, senão para cuidar da fronteira com o suposto inimigo potencial, a Argentina, pois, do ‘perigo soviético’ nos defenderiam os EUA. Por consequência, recebendo material e equipamentos de segunda linha, prescindíamos do desenvolvimento de tecnologias e produção de armamentos próprios, vedada às nossas forças e à incipiente indústria bélica qualquer sorte de transferência de tecnologia. Para o papel subalterno de guardas pretorianos do statu quo, ou para intervir no processo democrático-constitucional, fraturado-o, não careciam de modernidade, mas tão somente de condicionamento ideológico.
 
Essa visão reflexa conheceu seu clímax no governo do marechal Castello Branco, quando foi cunhado o infeliz bordão ‘o que é bom para os EUA é bom para o Brasil’. Os demais governos militares, todavia, incentivaram o desenvolvimento da indústria nacional de defesa, de que são símbolos a EMBRAER e seu AM-X, estenderam a soberania marítima para 200 milhas, romperam com o Acordo Militar Brasil-EUA, firmaram o acordo nuclear com a República Federal da Alemanha (1975), severamente combatido pelos EUA, e deram impulso à pesquisa nuclear, impulso cujo ritmo, todavia, não foi mantido pelos governos seus sucessores, contra os quais testemunha o projeto de nosso submarino de propulsão nuclear, velho de quase 40 anos.
 
A busca da nova configuração do Hemisfério
 
A nova inserção brasileira na ordem internacional deve ser vista como descomprometida com a herança já consumida da Guerra Fria, à qual, todavia, ainda se remontam alguns zumbis. O mesmo se dá com o mundo resultante da II Guerra Mundial, com sua ‘paz dos vencedores’, uma ordem superada que as ainda grandes potências, todavia, querem ver congelada, com uma OTAN intervencionista e impune, com uma ONU comandada por um Conselho de Segurança que não mais representa a correlação de forças no cenário internacional, e um acordo de Bretton Woods despedaçado pela violência da realidade. Em nosso continente seus despojos são o TRIAT rasgado pelos EUA na ‘guerra das Malvinas’, e uma OEA sem sentido e sem missão.  
 
A disparidade entre o poder econômico do Brasil e o dos seus vizinhos elimina do horizonte hoje visível qualquer hipótese de guerra regional, a não ser por procuração de potência extra-continental, como, aliás, no Império sob a hegemonia britânica, foi a imoral guerra contra o Paraguai, e, na recente ditadura, a intervenção na República Dominicana, neste caso atendendo aos interesses dos EUA, sujando as mãos por eles. Resta a hipótese de confrontar inimigo muito mais poderoso, caso em que não caberá a ilusão de enfrentá-lo de igual para igual, senão adotando uma política de máxima contenção do invasor, na expectativa de desanimar qualquer projeto atentatório à nossa soberania.
 
Mas, para tal fim, precisaremos de Forças Armas com poder dissuasório, isto é, capazes de resposta rápida e de provocar tais baixas no inimigo que o faça pensar duas vezes antes de nos atacar.
 
Em país com as características brasileiras, amante ativo da paz e da boa convivência internacional, o papel de suas Forças Armadas é o de serem capazes de inibir qualquer desrespeito às regras da convivência internacional, de soberania e de autodeterminação. Dito de outra forma, sabemos que a inexistência de capacidade de defesa, isto é, de força dissuasória, é eficiente estímulo à aventura militar externa.
 
Qualquer que seja a política nacional de defesa, ela depende de nosso desenvolvimento econômico, gerador de nosso desenvolvimento científico-tecnológico, gerador de nosso desenvolvimento industrial e não tem e não pode ter política de defesa o Estado que não possui indústria bélica.
 
E quem não produz sua própria tecnologia militar não tem tecnologia militar alguma.
 O Brasil não apenas renunciou ao uso da energia nuclear para fins não pacíficos, como tornou essa renúncia uma cláusula constitucional, o que não tem precedente na história das nações, e, ademais, aderiu unilateralmente ao Tratado de Não-proliferação Nuclear (TNP) e ao MTRC (tudo no governo neoliberal). Está certo e é coerente com nossa história de povo e civilização o Brasil não ser nem desejar ser uma potencia militar e principalmente uma potencia nuclear, mas é pelo menos estranho que renuncie a um sistema de defesa convencional -- ainda que constitucionalmente limitado à dissuasão --, compatível com sua presença continental.  
 
O fato objetivo é que não há a menor relação, do ponto de vista militar, entre nossas forças e as necessidades do país, considerada sua dimensão continental, seu litoral, suas fronteiras, a riqueza de seu mar territorial, a Amazônia, seus recursos minerais e hídricos, seu papel no Atlântico Sul, sua população (70% vivendo à beira-mar) e a exigência de projeção do poder nacional.
 
Não há exagero na afirmação segundo a qual, nas circunstâncias acima referidas, é dramática a fragilidade de nossas Forças Armadas. Mas este, lamentavelmente, não é o cerne da questão, porque é impossível pensar em defesa nacional, cingindo-se ao ponto-de-vista estritamente militar. A fragilidade não é apenas material, posto que a política de defesa – qualquer-- deve fundamentar-se, antes de tudo, em elementos culturais e ideológicos, e depende da adesão da cidadania, porque, assim como a economia e a diplomacia,   a guerra é, ao fim e o cabo, uma questão eminentemente política que, vá lá o truísmo, exige direção política. Mas exige, na sua essência, um quadro humano preparado para a execução política e operacional dessas diretrizes. Refiro-me, evidentemente, ao aparelho militar, nossos oficiais, vitimas de um ensino arcaico, assincrônico, desapartado da realidade, posto que nossas academias militares ainda não tomaram conhecimento nem do fim da Guerra Fria, nem do fim da Ditadura, muito menos da nova correlação de forças internacional.
 
Entre a anistia negociada e a inesperada posse de Sarney (o presidente do partido do governo militar eleito vice-presidente na chapa da oposição civil) estava a garantia, pelos militares, de respeito ao colégio eleitoral arrombado em troca do compromisso de a Nova República evitar qualquer sorte de apuração da responsabilidade militar pelo golpe e suas consequências. Sabe-se que Tancredo Neves adiou seu tratamento, ao preço da morte, com receios, que não deveriam ser infundados, de a transação não ser respeitada. Mas as forças armadas, como instituição, continuaram defendendo a legitimidade do golpe de 1964, mesmo pela voz de oficiais generais em comando, e até por insólitas ‘Ordens do dia’ emitidas todo 31 de março.
Em recente artigo, a jornalista Miriam Leitão lembra o episódio que levou à demissão do Ministro Viegas (primeiro ministro da defesa do governo Lula) como resultado de seu embate com o então comandante do Exército. Ao deixar o ministério Viegas, mostrou quanto era inadmissível que até àquela data as forças armadas não tivessem revelado “qualquer mudança de posicionamento e convicções”. Para ficarmos em poucos exemplos, lembremos que o ministro (da defesa) Nelson Jobim (sucessor de José Alencar e de Waldir Pires) foi humilhado ao ter que assistir à formação de oficiais de turma denominada de Médici (O que esses jovens oficiais sabem do golpe e da ditadura? Que estão defendendo?). Ademais, numa revelação dramática da incompreensão dos novos tempos, a oficialidade superior e os comandos constrangem ainda o poder civil, e constrangem a República, sonegando informações que a sociedade e a Justiça reclamam sobre torturados, mortos e ‘desaparecidos’ durante a repressão. A consolidação do poder civil requer reformas que a nova democracia, parece,   ainda não se sentiu, segura de operar. Uma das reformas, é a da formação dos oficiais aos quais a República entrega a defesa da Pátria.
 
Por força desse ensino e dessa formação parados no tempo, nossos oficiais ainda hoje são despreparados de diversos pontos de vista, sobretudo quanto à formulação da grande estratégia. Em regra, estão à míngua de formação política e sensibilidade social, são desinformados relativamente às relações internacionais e suas conexões. Dominados pelo espírito corporativo, primitivo, não têm visão filosófica para refletir sobre as mudanças do mundo.
Cabe à República, pelo seu poder civil, definir as forças armadas de que precisamos e os generais de que precisamos.
 
Uma força armada desamada é um estranho dentro de sua própria casa.
 
Deserdados da sociedade e da cidadania não formam exércitos de defesa e resistência. Estes carecem da força da população que pretendem proteger, e da identificação dessa mesma população com seus objetivos.
Insistimos na necessidade de aparelhamento de nossas forças armadas, lembrando, porém, que a eficiência operacional é ditada não apenas pela qualidade e número de armas e homens, mas pela qualidade do adestramento profissional-militar, quando a guerra assume o seu atual e definitivo caráter de sofisticação cibernético-tecnológica.
 
As Forças Armadas, ademais de aptas do ponto de vista material-tecnológico para o pronto-emprego, deverão ser concebidas a partir da vontade nacional e de sua missão no projeto estratégico coletivo; os valores nacionais são oferecidos pela sua formação de povo, Nação e país, pela sua cultura, pela sua história. As Forças Armadas deverão estar condicionadas pelo que precariamente chamarei de ‘Projeto nacional’, tentando significar o papel que o pais escolheu para inserir-se no concerto das nações. Este condicionamento reclama a necessidade urgente de reformulação das forças armadas brasileiras, revendo conceitos, objetivos, missão, papel, estrutura e armamento, e, acima de tudo, repitamos à exaustão, a formação de seus oficiais.
 
Segurança nacional, como tem demonstrado a democracia, é antes de tudo desenvolvimento econômico-social auto-sustentado, isto é, com inversão profunda das desigualdades sociais e regionais, e está estreitamente ligada à qualidade de vida dos cidadãos.
 
Nosso projeto fundamental é, hoje, e para as próximas décadas, ultrapassar a condição periférica, e sua estratégia é o estreitamento da relação Sul-Sul, tendo como ponto-de-partida o sub-Continente, onde já desfrutamos de posição destacada. A partir daí, utilizando este ponto de apoio, cabe aprofundar o relacionamento com os países africanos, a começar pelos países da lusofonia, mas a eles não se limitando.
 
De certa forma, podemos afirmar que este objetivo foi antecipado pela Constituinte de 1988, ao consagrar (art. 4º da Constituição):
 
A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da America Latina visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
 
Se fosse possível uma restrição ao mandamento constitucional, pilar de nosso ‘Projeto nacional’, limitaríamos o alcance latino-americano, que compreende a América Central, parte do Caribe e o México, até onde não chegam nem nossa liderança nem nossas aspirações de unidade.
 
O que seja esse ‘Projeto Nacional’, porém, será tributário e servidor do papel que estivermos dispostos a desempenhar na America do Sul e no Hemisfério, e sua articulação considerará a consciência do que somos e a decisão do que queremos ser.
 
Queremos ser um modelo alternativo de desenvolvimento auto-sustentável em contraste com as grandes potências industrias de hoje; democrático, solidário, progressista; uma sociedade harmônica e igualitária, aberta ao convívio amistoso de todas as crenças e etnias, amante da paz e da liberdade. Uma civilização que combaterá o intervencionismo porque dele jamais lançará mão.
 
Alguns pontos-objetivos
 
No plano continental, nada obstante as imensas dificuldades interpostas por agentes nacionais e forâneos, esse Projeto, fruto de nossa experiência histórica, deverá estar comprometido com:
 
a democracia e os regimes representativos;
a desnuclearização de todo o Continente de par com a exigência do fim de todos os estoques de armas nucleares e de destruição em massa;
a proteção e o fortalecimento das culturas nacionais;
a articulação econômica, cultural e política entre os povos;
a proteção de nossas economias, a promoção do desenvolvimento e a distribuição de renda como ponto de partida para a superação das desigualdades sociais e construção futura de uma sociedade sem classes;
a proteção das matérias-primas, de nossos recursos naturais e de nossas fronteiras;
o desenvolvimento em comum pólos de ciência e tecnologia; e
a latinidade como valor estratégico.
 
Finalmente, o compromisso do Estado brasileiro deverá ser o de lutar pela paz e a não-intervenção nos assuntos internos de outros países, e, em particular, a intervenção estrangeira no Hemisfério.
 
Como conclusão
 
É preciso virar a página. Não podemos sacrificar nossas necessidades atuais em razão de traumas de há 30-40 anos. A democracia carece de serviço de inteligência, e carece de política de defesa. Sob a égide da Constituição de 1988, a ABIN nada tem a ver com o SNI, e o papel das Forças Armadas é e deve ser distinto daquele da plúmbea noite da ditadura. Essa é a exigência do Estado democrático que, aos trancos e barrancos, conseguimos construir e buscamos consolidar.
 
Roberto Amaral
Cientista político, ex-ministro de Ciência e Tecnologia e editor de Comunicação&política
 
 
 
 
 
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https://www.alainet.org/es/node/162029
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